Considere a situação hipotética a seguir.
Zélio da Silva Pinto tem conta-corrente no Banco X S/A, por meio do qual recebe seus proventos de aposentadoria pela Previdência Pública nacional. De 2009 até o ano passado, o correntista passou a contrair, por diversas modalidades de crédito oferecidas pelo seu banco entre elas créditos consignados, cartões de crédito e créditos pessoais, vários empréstimos junto à instituição financeira. Ocorre que Zélio, há aproximadamente cinco anos, tem demonstrado alteração comportamental, que culminou com a ação de interdição ajuizada pelo seu filho, seu curador, com curatela deferida em janeiro de 2014. Foram vários empréstimos sem nenhuma destinação específica, não tendo Zélio adquirido nada de valor, nem mesmo algum item novo para sua casa, que é simples e conta com móveis antigos. Em decorrência do número sempre crescente de parcelas dos empréstimos, com a diminuição de seu poder aquisitivo mensal, o senhor Zélio não teve condições de pagar o aluguel, tampouco o condomínio do apartamento em que vive no centro da Capital, tendo sido, inclusive réu em ação de despejo. Segundo Fábio, seu filho, relatório médico da lavra do Dr. Ribeiro acentua que seu pai estava sob os seus cuidados médicos desde 2 de janeiro de 2010 devido inicialmente a quadro de alterações da personalidade, conduta e comportamento com sintomatologia psicótica, tendo persistido com alterações de humor, personalidade, conduta e crítica compatível com processo demencial, com início provável a cerca de dois anos da data da primeira consulta psiquiátrica em 2 de janeiro de 2010, não apresentando capacidade de responder por si mesmo, com necessários cuidados de outros e tratamento regular com a psiquiatria e a geriatria.
Fábio, preocupado, procurou a Defensoria Pública, buscando respostas para duas perguntas:
A) Os contratos feitos com o Banco X S/A são negócios jurídicos válidos?
B) Se, eventualmente, existirem contratos já liquidados, do ponto de vista jurídico, há alguma medida a ser tomada?
Na qualidade de Defensor(a) Público(a), responda às questões de Fábio fundamentando suas respostas. Não acrescente fatos novos.
O negócio jurídico é ato jurídico lícito, que consiste na manifestação de vontade da parte, conforme o ordenamento legal, com o fim de produzir efeitos jurídicos. Seus requisitos são agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104, CC). Ao lado da capacidade geral para a vida civil, coloca-se também a ausência de impedimento ou restrição para o negócio jurídico especificamente celebrado.
No caso em tela, entre os anos de 2009 e 2013, Zélio e o Banco X encetaram diversos negócios jurídicos com o fim de fornecer crédito ao primeiro, na forma de mútuos feneratícios, com descontos da parcela diretamente na folha de pagamento, e crédito rotativo por meio de cartão. Tais contratos são regidos pelo Código Civil (art. 586, CC) e pelo Código de Defesa do Consumidor, eis que presentes as figuras subjetivas (fornecedor e consumidor - arts. 2° e 3° do CDC) e objetiva (serviço - art. 3°, §2°, do CDC) da relação consumerista, o que confirma a súmula n° 297 do STJ, aduzindo que às instituições financeiras aplica-se o CDC.
Ocorre que, como explicitado, a capacidade do agente é requisito essencial do negócio jurídico, sendo este nulo em razão de incapacidade absoluta (art. 166, I, CC) e anulável se a incapacidade for relativa (art. 171, I, CC). Zélio, segundo dados médicos, possui doença que influencia diretamente na sua manifestação de vontade, causando a impotência de exprimi-la por causa permamente, o que, após as alterações promovidas pela Lei n° 13.146/15, implica o reconhecimento da sua incapacidade relativa (art. 4°, III, CC).
Tal condição, segundo o laudo do médico, teve início por volta de janeiro de 2008, portanto, antes dos negócios jurídicos firmados com o banco. Assim sendo, em que pese a curatela deferida apenas em 2014, a doença já se manifestava no contexto fático da manifestação de vontade, sendo os negócios firmados anuláveis (art. 171, I, CC). Não há dúvida, no caso, de que os contratos devem ser anulados, com a restituição das partes ao "status quo ante" (art. 182, CC) pois o consumidor possui uma vulnerabilidade inerente em face do fornecedor (art. 4°, I, CDC), acentuada no caso fático pela doença, obrigando este último a um dever de diligência antes de encetar os negócios, o que não se verificou na espécie.
Portanto, anulando-se os contratos de crédito e empréstimo, conforme a jurisprudência do STJ, o banco X deve restituir a Zélio, de forma simples, todas as parcelas pagas, compensando-se com eventuais valores decorrentes do empréstimo que ainda se encontrem em poder do mutuário.
Note-se que a liquidação do contrato não retira o seu caráter de nulidade, devendo-se, da mesma forma, restituir a Zélio as parcelas pagas.
QUESTÃO
PEÇA
SENTENÇA
10 de Novembro de 2017 às 12:48 Jon Snow BR disse: 1
Excelente resposta!